A expressão “Soberania digital” nasceu no seio do movimento de defesa dos direitos digitais, como forma de alertar os Estados para a sua grande dependência das grandes multinacionais tecnológicas (Microsoft, Google, Amazon, Apple etc …). Multinacionais, que quase sempre estão associadas a dois grandes polos do poder económico-político mundial, os Estados Unidos da América, com o seu domínio nos serviços digitais, e a China com a sua grande capacidade de produção de componentes computacionais (quem se lembra do caso da Huawei).
Se a história recente nos mostrou alguma coisa foi que uma grande concentração de poder não é benéfica e leva a abusos, basta vermos a revelações de Snowden e os cuidados que os países Ocidentais têm com a relação diplomática com a China.
Apesar de bem intencionado, o conceito de Soberania Digital é limitativo, “soberania” aplica-se quase sempre países ou Estados, e pode ser subvertido num nacionalismo ou protecionismo digital, contrários à ideia de uma computação e Internet livres e abertas, que estão na origem de dos movimentos de defesa dos direitos digitais.
Defendo, por isso, que o conceito de soberania digital dever-se-á transformar em autodeterminação digital ou tecnológica, ou autonomia tecnológica (também posso inventar uma palavra e chamar de autotecnomia). Ideia, conceito, que começa no indivíduo e que se desenvolve progressivamente para a sua família, negócio, esfera de influência, cidade, província, país, região, continente etc…. e, como veremos, interliga e é o fio condutor de praticamente todas as frentes pela defesa pelos direitos digitais.
Autodeterminação digital do indivíduo, da pessoa, é a sua liberdade, liberdade de escolher em quem confiar com os seus dados pessoais, com seu trabalho e com as suas criações, que serviços utiliza, que software, que hardware, quando começa, quando acaba, sem ficar dependente de terceiros para aceder ou ler os seus dados, as suas mensagens, os seus ficheiros, as suas fotografias, etc… agora, no futuro e em tudo o que fez no passado.
Quantos de nós não dependemos de serviços comerciais para os nossos e-mails, mensagens, notas, gestão de fotografias etc.. Quantos conseguiriam no espaço de uma semana mudar para outros prestadores de serviços? Quanto de nós não temos ficheiros de trabalho, ou escolares com mais de 10 anos que não conseguimos abrir por já não existir o software que os criou ou até mesmo hardware para os ler?
A verdade é que a grande maioria das pessoas, no que toca, ao seu mundo digital, vive num par de jardins murados, dos quais tem muita dificuldade em sair.
Eu sei, porque demorei mais um mês para fazer o backup do Google Fotos e apagar “à mão” as milhares de fotografias que lá guardava. Eu sei, porque ainda tenho uns ficheiros numas disquetes ou minidisks que já não consigo abrir. Estou preso em práticas comerciais não compatíveis com a minha capacidade de autodeterminação. Se pensarmos bem, este fenómeno não acontece em mais nenhum aspecto das nossas vidas, este problema coloca-se quase exclusivamente no mundo digital, num mundo cada vez mais digital.
Bem sei que por vezes a rapidez da evolução tecnológica não é compatível com a nossa capacidade de nos adaptarmos a novos formatos, mas talvez por essa razão o quer que tenha ficado obsoleto deverá também ficar livre. Livre de patentes e aberto nas especificidades, para que o que deixámos para trás ainda possa voltar a ver a luz do dia. Pelo menos, devemos isso à preservação da nossa cultura e história coletiva.
Se aumentarmos a escala da autodeterminação digital para a nossa família, deparamos-nos com problemas de comunicação. Cada um gosta mais de uma determinada App para comunicar e partilhar fotografias dos netos e filhos. A maioria dos meus familiares utilizam o whatsapp, eu gostava de mudar para o telegram ou signal, para fugir de tudo facebook. A minha cunhada tem um iphone, provavelmente gostava de utilizar mais o imessage. Se calhar, alguns de nós têm tarifários onde os dados de algumas apps não são contabilizados - uma prática comercial das operadoras de comunicações denominada zero rating e que vai contra o princípio da neutralidade da rede logo também é contra o princípio da autodeterminação digital.
A limitação de neutralidade de rede através de práticas como o zero-rating é limitadora da escolha do utilizador, da sua autodeterminação digital, limitando o mercado concorrencial. Dá prevalência a apps com maior poder no mercado em detrimento de outras, desvirtuando a concorrência entre as apps para longe da simples comparação entre as suas funcionalidades e características. Por outro lado, limita também a capacidade das pessoas para mudar de operadores de comunicação, cria um efeito de lock-in, em especial para aquelas que ainda não têm dimensão para estabelecerem acordos com os fornecedores de apps ou em que os acordos são exclusivos com determinados operadores. Em suma, a prática de zero-rating, como tantos outros exemplos mencionados neste texto, procura limitar a capacidade individual de cada um de nós de exercer a sua escolha. Do lado dos fornecedores de serviços digitais e empresas, chama-se a isto técnicas retenção de utilizadores ou de redução de elasticidade da procura, o que lhes permite aumentar preços e formas de rentabilização, pois sabem que os seus clientes têm dificuldade em mudar para a concorrência.
Mas quem diz sistemas de mensagens pode dizer, sistemas de e-mails com extensões proprietárias, como o Exchange da Microsoft, os protocolos e backups em formatos não abertos, serviços de partilha, de gestão de media digital, rtc..
Neste mundo digital pergunto-me: como vão os meus filhos gerir a minha herança digital, na minhas peculiares escolhas digitais?
Quem já utilizou ou ouviu falar do Gnumeric ou AutoCad? São dois exemplos de software muito distintos, não só na sua função mas também na sua natureza. O primeiro é Software Livre, respeita as 4 liberdades (executar, estudar, modificar e redistribuir), o outro é um software que não respeita nenhuma. O primeiro é da classe das folhas de cálculo e utiliza formatos de ficheiros abertos, ou seja a forma como se constrói ou lê um dos seus ficheiros está bem definida e livre de qualquer patente ou direitos de autor, o segundo é um software standard em muitas industrias para o desenho assistido por computador, o formato dos seus ficheiros é fechado. Daqui a 30 anos poderei ter dificuldades em ler os ficheiros criados no Gnumeric, mas aposto que será praticamente impossível ler os meus ficheiros de AutoCad.
Não podemos ter uma capacidade relevante de autodeterminação digital sem Software Livre, sem computação livre e sem dados livres. Dados livres são especialmente relevantes nos mais recentes desenvolvimentos de redes neuronais (ou no termo mais comum e comercial, sistemas de “inteligência artificial”), onde o fator determinante do seu comportamento são os dados utilizados para o treino e validação.
O mundo digital está cheio de oportunidades para que todos possamos comunicar, criar e até consumir, no entanto, também veio cheio de oportunidades para desequilibrar a relação entre as pessoas e as empresas, através da limitação artificial e muitas vezes subliminar da capacidade de autodeterminação de cada um de nós. Não faltam exemplos disso, mas talvez o mais notório para mim é o advento do DRM.
DRM ou “Digital Rights Management”, são mecanismos digitais para limitar a utilização de meios digitais, poderá ser um CD de música, uma consola ou um filme em Blu-Ray, um vídeo no YouTube, Netflix, entre outros. Quem não se lembra dos CD de música que vinham com um software próprio para o PC? ou da limitação geográfica dos DVDs? Ninguém podia emigrar para uma zona diferente e levar a sua coleção de DVDs consigo, iria ter uma grande dificuldade em ver o seu conteúdo outra vez. Isto é o mercado editorial a limitar artificialmente a forma com que consumimos os conteúdos criados, de modo aumentar a sua escassez e aumentar receitas. Algumas destas práticas tornam os exemplos referidos anteriormente obsoletos, simplesmente porque, pela sua natureza, são media digitais estáticos e não conseguem acompanhar a evolução tecnológica das plataformas digitais que utilizamos.
Existe uma história muito interessante em Portugal que marca uma vitória por quem luta há anos contra o DRM.
Infelizmente os dos abusos do direito de autor e “propriedade intelectual” não acabam aqui, nos último anos temos assistido à discussão do “Right to repair”, direito à reparação, por exemplo, a luta dos agricultores nos EUA pelo seu direito à auto reparação dos seus tratores e ferramentas agrícolas, que cada vez mais estão dependentes de software ao qual não podem legalmente aceder ou modificar. O mesmo se está a passar nas nossas casas, com os nossos eletrodomésticos com os nossos computadores e outros aparelhos eletrónicos e até mesmo com os nossos carros.
Num extremo estamos a assistir a uma limitação de acesso à computação livre, com o vendedores de componentes e processadores, em cooperação com as multinacionais de software, a limitar a utilização livre do seu hardware. Quando compramos um novo smartphone ele não é nosso, é da empresa que controla o seu software e que pode decidir a qualquer momento o que é “melhor” para nós. Por exemplo, monopolizam os mecanismos de pagamento de serviços subscritos no nosso smartphone . A nossa autodeterminação digital está mais uma vez severamente comprometida.
Grande parte das nossas vidas passa por e depende de meios digitais, software e hardware, sobre os quais não temos qualquer controlo de como funcionam, e sobre os quais podemos estar até legalmente impedidos de descobrir. Esta situação só tem vindo a piorar.
Quando chegamos à escala de uma empresa existem duas vertentes, as empresas são clientes de outras e também têm clientes, ou seja, por um lado procuram limitar a autodeterminação digital dos seus clientes, por outro são vítimas da sua própria capacidade de autodeterminação digital limitada pelos seus fornecedores de serviços e hardware.
Nas empresas as quantidades de dados são maiores, a digitalização é cada vez mais essencial e crítica do seu sucesso. Tal como as pessoas nas redes sociais e nas Apps de comunicação as empresas podem sofrer do efeito de grupo, não tendo completo controlo sobre o software e sistemas digitais que pretendem utilizar. Seguindo o exemplo do AutoCad, quando um determinado software é dominante (ou monopolista) numa determinada a indústria, a escolha faz-se por si.
As escolhas das empresas não o são sem determinados riscos. Tal como os indivíduos, as empresas podem ficar presas a software ou sistemas digitais desatualizados e sem suporte, porque não conseguem investir o que é necessário para os atualizar, ou apenas porque os fornecedores de hardware (como impressoras, máquinas de corte, etc..) decidem que não é mais do seu interesse continuar a prestar apoio e garantir o seu funcionamento, ou ainda porque as empresas fornecedoras de sistemas digitais deixam de existir. Note-se que o custo de atualizar sistemas digitais não está apenas no produto em si, mas também no hardware necessário, no know-how, na formação de trabalhadores, incluindo os tempos de não produção. Em geral, as empresas não têm o controlo do ciclo de vida dos sistemas digitais que utilizam e, tal como as pessoas, também podem apostar nos cavalos errados, com resultados desastrosos e de grande impacto económico.
A autodeterminação das empresas dá-se na sua capacidade de não ficarem excessivamente dependentes de um qualquer sistema digital para a produção das suas atividades e para as suas interações com os seus clientes, outras empresas e também entidades públicas. Verifica-se aqui que não é possível a autodeterminação digital das empresas sem a autodeterminação de todos os intervenientes na atividade económica.
Imaginem o que seria se cada marca de telefone não conseguisse comunicar por voz com outras marcas. Seria no mínimo estranho, no entanto, é esta a realidade que muitas empresas sentem em relação aos seus sistemas digitais. Encontram-se presas a práticas anti-concorrenciais e monopolistas, por vezes sem se aperceberem do problema e muitas vezes sem alternativas.
É por isso importante garantir que não se criem monopólios digitais à custa da limitação artificial da capacidade de autodeterminação nesse espaço. É importante garantir que existam padrões abertos e interoperabilidade entre software e hardware concorrencial e que tal seja respeitado, é importante que exista regulação.
Para um mercado digital verdadeiramente livre, aberto, inovador, potenciador da autodeterminação digital de todos, precisamos de interoperabilidade mas acima de tudo precisamos de interoperabilidade adversária. Isto é, se interoperabilidade é capacidade de um sistema comunicar ou ser utilizado com outro, interoperabilidade adversária é conseguir fazê-lo sem pedir permissão, sem qualquer peso legal ou monetário.
Por outro lado, as próprias empresas podem ser consumidoras ou fornecedoras de serviços digitais, podem recolher dados de outras empresas ou indivíduos, são por isso quase sempre limitadoras da autodeterminação digital de outros. Poderá ser apenas por razões comerciais, captar e reter clientes, ou dados que ajudem a aumentar as suas margens de lucro, ou simplesmente porque é o seu negócio. Imaginem só o que seria se a Sonae e o grupo Jerónimo Martins publicassem, de forma fácil de utilizar, todos os dados que recolhem dos nossos padrões de compras e dos preços dos seus produtos? Poderíamos, decidir e fiscalizar de forma mais eficiente, o mercado seria mais justo.
Entidades públicas e o sector do Estado não têm problemas muito diferentes das empresas, mas têm outro tipo de responsabilidades. Num mundo digital de hoje, hiperconectado, viciado na recolha de dados e informação, em que os grandes fornecedores de sistemas digitais são empresas multinacionais, não se pode ignorar os riscos associados à segurança, aos segredos de Estados e à diplomacia. Por exemplo, não se pode continuar a olhar para o lados quando todos os e-mails de um função pública, incluído decisores políticos, passam pelos servidores dessas multinacionais, sediadas em países que já demonstraram não terem grandes pudores em ler correspondência alheia.
A autodeterminação digital das entidades públicas é um dever, sem o qual não se poderão garantir as mais básicas funções de um Estado independente (auto-determinado), livre de influências ou manipulações, fruto de fugas de informações sensíveis ou de dados pessoais dos seus cidadãos. Não nos esqueçamos dos sectores da saúde e educação, que utilizam equipamentos muito especializados e tratam dados de sensibilidade acrescida.
É necessário perceber que os Estados possuem um tempo de “vida” muito superior ao das empresas, por esta razão devem ser capazes de desenvolver as suas próprias ferramentas digitais e/ou utilizar software livre e contribuir para o seu desenvolvimento, evitando desta forma, qualquer efeito de lock-in e externalização de know-how.
Por outro lado, o Estado, desde a junta de freguesia local até à maior empresa pública, passando pela polícia de segurança pública e acabando no instituto de mobilidade e transportes, tem o dever de dar o exemplo e contribuir para a capacidade de autodeterminação digital de todos, servindo até de catalisador económico.
Os Estados são os maiores recetores e os maiores responsáveis de tratamento de dados, os maiores empregadores e os mais relevantes atores económicos. O seu potencial intrínseco para autodeterminação de todos e consequentemente servir como catalisador económico e científico é, de onde estou sentado, imensurável.
O mais triste exemplo em Portugal de como um Estado pode falhar é o constante incumprimento do seu regulamento de interoperabilidade, documentado e forma muito pouco exaustiva pela ANSOL.
E muitos mais exemplos e causas na defesa dos direitos digitais se poderiam referir e desenvolver. Deixo ao leitor o exercício de identificar o que limita a sua própria autodeterminação digital (autotecnomia).
Por um futuro digital melhor.