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Racionalismo, tecnologia, direitos digitais

Função Pública e Portugal....

Posted at — Mar 15, 2015

Portugal, aliás qualquer país no mundo é o maior empregador da sua região. A realidade é essa, a função pública e o trabalhador público, médicos, enfermeiros, professores, informáticos, polícias, militares, técnicos superiores, assistentes, auxiliares, jardineiros, serralheiros, porteiros, electricistas, economistas, juristas, costureiras, arquitectos, motoristas…..uff! É incrível a dimensão e a diversidade dos funcionários públicos, tanto centrais como nos diversos organismos locais.

Os funcionários públicos são a face, a foice, o martelo, a máquina de calcular e o braço armado do Estado, mas não são o Estado. Nem devem ser confundidos com ele, nem com o Governo. Nunca o devemos esquecer o Estado somos todos nós, sem excepção.

O pior estereótipo do funcionário público em Portugal é do trabalhador que cumpre escrupulosamente o horário de trabalho, durante o qual passa a maior parte do tempo na conversa, na internet, tomar café, fumar ou jogar cartas no computador, ou seja, não faz nada ou muito pouco e pouco se interessa pelo que faz ou pelo que devia fazer. Como todos os estereótipos, este é também uma generalização de uma verdade escondida…

A verdade escondida da grande maioria é que os funcionários públicos são a única barreira, que os portugueses têm, contra a instrumentalização dos serviços da administração pública, para benefícios político-financeiros dos partidos e contra o despesismo geral.

Por causa disto os funcionários públicos são constantemente rebaixados pelas entidades políticas (aqui incluo as principais centrais sindicais), por causa disto a função pública tem sido desprovida de efectividade através do constante e perdurado abuso de poderes que tem favorecido uma cultura de clientelismos e politização da administração, ao invés de uma cultura meritória, por causa disto os funcionários públicos em lugares de chefia ou fazem parte do clientelismo ou estão desmotivados, derrotados, sem qualquer poder, responsabilidade e interesse efectivo, por causa disto o estereótipo dos funcionários públicos é o que é.

Permitam-me um exemplo não tão hipotético. Imaginem que num dado serviço da função pública é colocado um novo funcionário, sem rodeios, por cunha política! sem ter sido manifestada a vontade pelas direcções de serviço e se calhar sem possuir as qualificações adequadas. Independentemente das muitas ou poucas qualidade desse funcionário, que autoridade terá qualquer director para repreender, pressionar, decidir etc..sobre qualquer assunto sobre ou com esse funcionário?…..Nenhuma! Como irão reagir os colegas do serviço perante um colega que se encontra no mesmo nível funcional mas goza de privilégios não declarados? Ficaram mais ou menos motivados?

Agora imaginem este tipo de situações multiplicadas por milhares de situações, desde o início desta República, agora imaginem que afinal o tal funcionário não é assim tão competente e nem tem os padrões éticos mais adequados (afinal aceitou uma cunha..). Multipliquem isso por mais de 40 anos e centenas de milhares de funcionários públicos e centenas de empresas públicas e propaguem as suas consequências no tempo.

Competências diluem-se, erros multiplicam-se e potenciam-se, e o que no início parece ser um grão de areia num oceano, transforma-se num grão de areia numa praia, onde as ondas vão rebentar e recuar.

O funcionário público é sempre a primeira e quase sempre a única testemunha do despesismo e das más decisões. Com esta percepção é difícil não conseguir imaginar como o estereótipo se pode tornar “de repente” numa realidade…e essa é verdade.

Em poucos anos de função pública ainda consigo ser surpreendido pela realidade do funcionalismo público, que em muitas situações ultrapassa a própria absurdez do estereótipo comum.

Coisas como “Mais vale não perguntar, não saber”, “A Lei não interessa quando está em causa o interesse público”, “A cunha é a única maneira”, “Não vale a pena”, “A política sobrepõe-se à técnica” etc…não se deviam ouvir nos corredores do serviços públicos. Uma orientação política não se devia confundir com o serviço público, um Governo não se devia confundir com a administração pública; um ministro, um secretário, um assessor não se deviam confundir com as direcções de serviço do funcionalismo público.

Quando a cultura da função pública chega ao ponto em que chegou é perfeitamente expectável que o funcionário público encare a sua função com desmotivação e/ou com desinteresse e só procure mais regalias e menos deveres (em face do despesismo que observa à sua volta)…mesmo que um novo funcionário entre motivado, como vontade de mudar, rapidamente é engolido pelo status quo.

* *

Criou-se um ciclo auto-reforçado de completo desinteresse e desmotivação dentro da função pública. Grande parte do problema está na organização da administração pública em Portugal, no grande poder não escrutinado da política na gestão corrente da função pública e, não posso deixar aqui de referir, esse auto-reforçar provém dos sindicatos que durante anos exigiram mais regalias, cegamente, como se a satisfação e bem estar dos funcionários públicos (ou mesmo de qualquer trabalhador) apenas dependesse de mais dinheiro, menos trabalho, mais segurança (leia-se menos meios de controlo e correcção da produtividade) e menos responsabilidades.

Mas eu percebo, funcionários públicos possuem família, amigos, e quando a questão se põe, preferem lutar por mais direitos e regalias pessoais, mesmo contra os próprios colegas, do que lutar contra o poder instalado, correndo o risco de ficarem sem emprego, ou num lugar penoso e hostil. É como se tratasse de uma contrapartida pelo bom comportamento, pelo silêncio, e todos o aceitam sem se aperceberem do questão a receber, sem pensar que estão a vender-se ao próprio mal que os mantém prisioneiros num emprego sem ambições, mas que no final do dia os deixa ir descansados para casa, para a sua família.

No fim, quem perde é Portugal. Não se iludam, um país não funciona sem uma administração pública que seja uma referência técnico-cientifica forte, competente, independente e eficiente, e no meu ponto de vista, Portugal deixou de funcionar como deve ser há já bastante tempo, se é que alguma vez funcionou nos 40 anos de democracia.